RAÚL ZIBECHI: DEZ DIAS QUE SACUDIRAM O URUGUAI

Professores em greve fizeram uma grande manifestação em 28 de agosto (Foto: Esquerda.net)

A derrota do decreto contra a greve docente e a rejeição ao TISA têm algo em comum: a rua foi quem estabeleceu o fim da guinada à direita.

Por Raúl Zibechi (jornalista uruguaio) - reproduzido do portal Carta Maior, de 20/09/2015

Durante os primeiros dias de agosto, o governo uruguaio ainda negociava sua participação no TISA (Trade in Services Agreement), o acordo para desregular os serviços e o comércio, com forte respaldo do seu ministro da Economia, Danilo Astori, e se dispunha a aprovar o orçamento quinquenal, apesar da resistência de alguns sindicatos, em particular o da educação. O presidente Tabaré Vázquez impunha um tipo quase monárquico de administração, segundo a correta expressão do historiador Gerardo Caetano.
 
Até que veio setembro, e o governo sofreu uma derrota inapelável, graças aos sindicatos de docentes, e teve que enfrontar a maior mobilização social em muitos anos (e a mais numerosa contra um governo de esquerda). A gestão de Vázquez foi questionada nas ruas, em seu próprio partido e pelo movimento sindical, e fechou a quinzena anunciando a decisão de abandonar as negociações sobre o TISA. Deste modo, as intenções de transformar o Uruguai em sócio privilegiado dos Estados Unidos dentro do Mercosul foram frustradas pela contundente mobilização popular.
 
O que aconteceu no país tem uma história prévia. Os sindicatos da educação enfrentam o autoritarismo há meio século. Primeiro, o do governo de Jorge Pacheco Areco (1967-1972), que decretou a intervenção das escolas de ensino médio e de ensino técnico, após decretar estado de exceção para conter os protestos sociais. Com o retorno da democracia, em 1985, os sindicatos de docentes tiveram que se manter mobilizados, enfrentando as reformas neoliberais e protagonizando importantes lutas nos Anos 90.
 
Já faz uma década e meia que os professores uruguaios pedem que 6% do orçamento nacional seja investido na educação. Após 11 anos de governo da Frente Ampla, os investimentos em educação continuam sendo uma das principais dívidas da esquerda. Baixos salários, escolas com problemas estruturais, deficit de docentes – com falta de professorem em alguns níveis educativos – e um desempenho geral estancado com tendência ao retrocesso, são problemas de longa data, mas que não foram revertidos pelos três governos da esquerda.
 
O aspecto mais chamativo da crise são as relações de conflito entre o governo e os sindicatos docentes. O ex-presidente José Mujica disse, em determinado momento do seu mandato, que “é preciso se unir e `fazer merda´ a esses sindicatos da educação. Entretanto, não passou das palavras desafortunadas, e não chegou tão longe quanto Vázquez, que decretou a quebra da greve dos professores, com punições administrativas e demissões massivas.
 
Foi a primeira vez, desde 1985, que uma medida semelhante era imposta, algo que nem os governos neoliberais tiveram coragem de fazer. A resposta foi drástica: milhares de professoras se concentraram na frente da sede sindical, em claro sinal de desacato ao autoritarismo. A central sindical decidiu convocar uma greve geral e uma marcha de 50 mil docentes, onde os estudantes protestaram contra o decreto de Vázquez, enquanto mais de 50 centros de estudos eram ocupados. A Frente Ampla se dividiu. Somente a direita respaldou o presidente.
 
Em meio ao clima de confronto entre o governo e os sindicatos, a Frente Ampla realizou um evento interno, no primeiro sábado de setembro, para discutir a posição a respeito do TISA, depois de várias idas e voltas sobre esse tema. A votação dos delegados dos diferentes setores e das bases mostrou o isolamento governamental: 117 votos a favor de se retirar das negociações, apenas 22 respaldando a postura do Executivo. No dia 7 de setembro, o governo anunciou oficialmente a desistência do Uruguai.
 
O TISA também tem sua história particular. Como destaca o economista Antonio Elías, a quem coube o mérito de desvendar o secretismo no país a respeito do acordo, essa história tem três etapas: a primeira em segredo absoluto, a segunda em caráter semipúblico – mas sem discussão aberta a respeito – e a terceira sim, de forma pública e com debate a respeito. Ainda assim, os documentos secretos não foram revelados à sociedade para serem analisados.
 
Durante quase um ano, entre setembro de 2013 e julho de 2014, quando foram publicados os primeiros dados sobre as negociações, o governo de Mujica não informava nem a população, nem os partidos aliados, nem o parlamento, a respeito do andamento das mesmas. O chanceler Luis Almagro, premiado por Mujica com o cargo de presidente da OEA, só reconheceu que havia uma negociação após revelações da imprensa, e ainda assim não explicou do que se tratava, apenas assegurou que seria um tratado positivo para o país.
 
As negociações oficiais começaram em fevereiro de 2015, sem o anúncio oficial, nos últimos dias do governo Mujica. A notícia foi dada pela página do Ministério de Relações Exteriores do Canadá, que confirmou a inclusão do Uruguai nas negociações, lembra Elías. Seria bom que alguém, em alguma das partes do mundo onde ele é aclamado, perguntasse ao ex-presidente quais as razões que provocaram tão significativo silêncio.
 
O importante é que o silêncio se rompeu e a sociedade uruguaia imediatamente rejeitou o TISA, e de forma contundente. Os meios de esquerda do país, que sempre tiveram um papel decisivo, o movimento sindical, as organizações sociais e ambientalistas, grupos como a Rede de Economistas de Esquerda (Rediu), acadêmicos e intelectuais, todos unidos modificaram a relação de forças. A votação interna da Frente Ampla, onde os partidários de Astori e Vázquez se resignaram a uma derrota de grandes proporções, reflete o modo de pensar da maioria dos uruguaios.
 
As histórias correram em paralelo, mas se encontraram em uma feliz coincidência. O país vive, ao mesmo tempo, a luta dos grêmios docentes, que ainda não terminou, e a resistência dos diferentes setores sociais contra o TISA, que é a continuação da que a esquerda travou em 2007, contra o TLC com os Estados Unidos, que o mesmo Vázquez pretendia assinar, em seu primeiro mandato, e também foi impedido pela pressão popular. Em ambos os casos, o mandatário foi apoiado somente pela direita, sendo criticado de forma unânime pelos setores de esquerda e pelos movimentos sociais.
 
A derrota do decreto contra a greve docente e a rejeição ao TISA têm algo em comum: o fato de que a sociedade não se deixou levar pelas políticas autoritárias, nem em nome do desenvolvimento, nem pelo fato de o governo se dizer de esquerda. A rua foi quem estabeleceu o fim da guinada à direita.
 
Tradução: Victor Farinelli

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