CHILE: BACHELET E A DÍVIDA PENDENTE DA DESIGUALDADE



Centenas de milhares de chilenos se manifestavam em agosto de 2012 em favor duma reforma do sistema de educação (Foto: EFE/Página/12)
A enorme distância entre ricos e pobres em termos de renda e acesso à educação, saúde e aposentadoria: segundo a Universidade do Chile, a renda per capita dos 10% mais pobres da população é 78 vezes menor do que a dos 10% mais ricos. É o legado das políticas neoliberais impostas pela ditadura de Augusto Pinochet.

Se nos próximos quatro anos Bachelet não cumprir sua promessa de levar adiante reformas substanciais na educação, saúde e aposentadoria, a líder socialista (do Partido Socialista) terá desperdiçado a segunda oportunidade que a maioria da população lhe deu para fazer do Chile uma sociedade mais justa.

Por Mercedes López San Miguel, de Santiago, no jornal argentino Página/12, edição de 16/12/2013

Chile, com seus 16,5 milhões de habitantes, sempre é elogiado pelo FMI por sua estabilidade econômica, desenvolvimento e sólidas instituições. O país faz parte da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que agrupa os países mais ricos. Este é um lado da moeda. O outro pode se ver sem maquiagem através das câmeras de televisão após o terremoto de 2010: a desigualdade em termos de renda e acesso à educação, saúde e aposentadoria.

No país se reduziram drasticamente os níveis de pobreza nos últimos 23 anos (de 45% da população em 1990 a 14,4% em 2011). No entanto, no último período esta diminuição foi muito menor, daí que se fala duma “pobreza dura”, a qual é muito mais dramática nas zonas suburbanas ou rurais do que nas grandes cidades.

A enorme distância que separa ricos de pobres coloca o país como um dos mais desiguais do continente. Segundo a Universidade do Chile, a renda per capita dos 10% mais pobres da população é 78 vezes menor do que a dos 10% mais ricos. As políticas impostas sob a ditadura de Augusto Pinochet, de corte neoliberal, que 20 anos de governo democrático de centro-esquerda da Concertação (“Concertación”) não mudaram (menos ainda no último governo, conservador, de Sebastián Piñera), atuam como biombo (“corset”) para aplicar reformas sociais e fomentam a exclusão de muitos. Consuelo Silva, investigadora da Universidade Arcis, assinalou a esta enviada que a desigualdade é um fenômeno inerente ao chamado milagre chileno. “No atual modelo econômico imperante no país, não existiu uma política de redistribuição de renda, porque se assume que o mercado é o mecanismo que distribui as rendas de maneira eficiente e ótima. Esta foi a postura de todos os governos nos últimos 40 anos, mesmo com alguns matizes de diferença. Por exemplo, o primeiro governo da Concertação (1990-1994), encabeçado por Patricio Aylwin, apresentou a ideia dum ‘crescimento com equidade’, a qual foi abandonada rapidamente”.

Silva observou que a solução deste flagelo só se consegue com mudanças de fundo. “Em lugar das políticas redistributivas, se  implementaram programas que buscam reduzir os níveis de pobreza, os quais são localizados e temporários. Portanto, quem tenha como propósito provocar uma real redistribuição da renda deveria levar a cabo uma série de reformas em áreas chaves da economia e da sociedade, como é o caso do mercado de trabalho, no âmbito da educação e nos sistemas tributários.”

Os massivos protestos protagonizados pelos universitários em 2011, reclamando o fim do lucro na educação, mostraram ao mundo que o modelo de ensino no Chile é regido pelas regras do mercado. É que a Lei Geral das Universidades, sancionada em 1981, delineou a privatização do financiamento do ensino superior e hoje os universitários não podem estudar grátis e se endividam para pagar seus estudos. No nível secundário, somente 40% têm acesso a colégios públicos gratuitos (municipais); o restante tem que ir para colégios particulares privados (que recebem subvenção do Estado) e os 10% mais ricos pagam colégios exclusivamente privados, que são os de melhor qualidade.

A lógica segundo a qual quem ganha mais tem acesso a um melhor serviço se reproduz com o sistema de saúde. A grande maioria dos chilenos pode optar pela destinação de 7% do salário para as privadas Isapres (Instituição de Saúde Previdenciária) e o estatal Fundo Nacional de Saúde (Fonasa), de acordo com um modelo vigente desde 1981. Aqueles que pelo tipo de salário não podem participar dum plano básico são destinados ao Fonasa. De fato, 82% da população dependem desta última cobertura, e é recorrente a queixa dos pacientes que entram em listas de espera para receber um tratamento ou operar-se. Ademais de terem que pagar à parte alguns serviços de saúde. Um dado significativo é que dois terços dos médicos trabalham em clínicas privadas.

As AFP (Administradoras de Fundos de Pensões) foram criadas pelo ministro do Trabalho de Pinochet, José Piñera, irmão do atual presidente, e são o único sistema de previdência no Chile. Vendido nos anos 80 como a grande solução privada, ou o sistema de capitalização individual ou poupança forçada, carece do direito individual de escolher entre poupança com o Estado ou com uma empresa privada. A primeira geração pura do sistema privado demonstrou que as aposentadorias em média – que são em torno dos 600 dólares – estão muito longe de superar as do antigo sistema de previdência.

Se nos próximos quatro anos (a presidenta eleita Michelle) Bachelet não cumprir sua promessa de levar adiante reformas substanciais na educação, saúde e aposentadoria, a líder socialista (do Partido Socialista) terá desperdiçado a segunda oportunidade que a maioria da população lhe deu para fazer do Chile uma sociedade mais justa.

Tradução: Jadson Oliveira

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