A ESCOLHA DE MANDELA NA BAHIA: O SINO, OS SALTOS E A PRAÇA CASTRO ALVES

Sabiamente foi à Praça Castro Alves, onde emocionou mais de 150 mil pessoas, num encontro animado ao som de músicas criadas e executadas por artistas baianos, ao longo da década de 80, clamando pelo fim da Apartheid e pela liberdade do ativista negro.
 
Por Joana D'Arck, jornalista baiana, no seu blog Pilha Pura, de 15/12/2013
 
Nelson Mandela veio uma vez à Bahia, em 1991, e aqui também marcou e disse a que veio. E eu estava ligada, presente. Repórter da edição dominical da Tribuna da Bahia, trabalhando no plantão do sábado, com a última pauta a cumprir para fechar o dia, eu, o editor, Grant Mariano, e o diagramador, Jorge Pulga, à espera. Felizmente não havia celular à época (Ui! Essas lembranças me fazem me sentir com um século nas costas! O que me consola é que o avanço da tecnologia faz todo mundo se sentir assim em algum momento). Ou eu seria totalmente neurótica nesse episódio. Surtaria mesmo! 

Às 9 horas, lá estava o secretário da Mesa da Câmara Municipal, vereador Castelo Branco, todo garboso e orgulhoso, porque cabia a ele ser o primeiro a receber, cumprimentar e conduzir o ilustre homenageado (nada a ver com alguma identidade com a causa heroica de Mandela. Era só uma coisa regimental). A Casa Legislativa mais antiga do Brasil estava paramentada para conceder a Mandela o título de Cidadão de Salvador, uma proposta de autoria do então vereador do PCdoB, Javier Alfaya (este sim, identificado com a luta). 

Mandela cumpriria aqui uma agenda grande para o curto tempo e o horário do voo não colaborou. Mas, não se sabe porque, a toda hora vinha um aviso da chegada do homem. Bléim, bléim, bléim... tocava o sino da Câmara, o mais antigo, belíssimo, lá no alto do histórico prédio. O sino tocava para anunciar a chegada do ilustríssimo convidado, seguindo o ritual dos tempos do Império, quando as badaladas anunciavam nova determinação do Governo e as pessoas se juntavam na Praça Municipal para ouvir a leitura do pergaminho.

E nada de Mandela. Castelo Branco se empertigava, ajeitava o bigode branco e a gravata. Nada. A mulher dele suspirava e descansava o pé fora do sapatinho de salto fino que causava dor lancinante. Isso se repetiu pela amanhã e invadiu à tarde.

Almoço não estava previsto e cada qual foi se virando ali pelo Palace Hotel (que tinha o restaurante mais procurado pelos vereadores, à época) e restaurantes da redondeza. E a tarde foi passando e nada de Mandela. 
 
O líder africano cumpriu o protocolo: foi recebido no Aeroporto Dois de Julho, seguindo para o Palácio de Ondina, onde foi recepcionado com um almoço pelo então governador Antonio Carlos Magalhães, cuja biografia se destoava totalmente da sua, depois seguiu para o Palácio Thomé de Souza, onde mais uma vez cumpriu à risca o que manda a programação oficial. Foi recebido pelo então prefeito Fernando José, que quando radialista dizia que matava a cobra e mostrava o pau e depois virou um telhado de vidros com popularidade totalmente despencada, isolado politicamente e enfrentando ameaça de pedido de impeachment. 

Foi também o telhado de vidro do Palácio Thomé de Souza que segurou Mandela, através de uma ardilosa manobra política do prefeito com o seu líder na Câmara Municipal, o vereador Dionísio Juvenal, autor de homenagem com inauguração de um busto de bronze do líder africano, que roubou mais tempo ainda. 

Na Câmara Municipal, a poucos metros do prédio da Prefeitura, o clima se exasperava. Mandela tá chegando! Dizia Castelo Branco de vez em quando, após novas badaladas, colado na porta do prédio histórico. E nada, e nada, e nada. E lá se vão as horas e os presentes desmanchados, suados, gravatas incomodando, sapatos inchando os pés de todos no plantão do dia inteiro. E Pixéu, o conhecido funcionário responsável pelo sino, também reclamando, com seus botões, da dor nos braços. 

Perto das 19 horas veio a notícia que causou cena de novela. O presidente da Câmara Municipal, Osório Villas Boas, anunciou que Mandela não iria mais à Casa para receber a homenagem. Fez drama, discurso de protesto. Só Discurso. Javier Alfaya não se conteve. Encheu os olhos d’água diante da frustração. Foi derrotado pela manobra dos aproveitadores da situação. Uma pena. 

Mandela cumpriu o protocolo até onde pode. Mas chegou o momento em que precisou escolher, diante do curto tempo, entre mais uma recepção oficial e a oportunidade de falar diretamente ao povo. Sabiamente foi à Praça Castro Alves, onde emocionou mais de 150 mil pessoas, num encontro animado ao som de músicas criadas e executadas por artistas baianos, ao longo da década de 80, clamando pelo fim da Apartheid e pela liberdade do ativista negro.

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