“SOU AQUELE PARA QUEM ESTÃO RESERVADOS OS PERIGOS, AS GRANDES FAÇANHAS E OS FEITOS VALOROSOS”


Desenho de Gustave Doré que
ilustra a capa da edição
mencionada
(...) Dom Quixote, impelido por seu coração intrépido, pulou sobre o Rocinante, embraçou a rodela, empunhou o arremedo de lança e disse:


- Sancho amigo, hás de saber que nasci, por vontade do céu, nesta nossa idade do ferro, para ressuscitar nela a de ouro, ou a dourada, como sói chamar-se. Sou aquele para quem estão reservados os perigos, as grandes façanhas e os feitos valorosos. Sou, repito, quem há de ressuscitar os cavaleiros da Távola Redonda, os Doze de França e os Nove da Fama, e o que há de fazer esquecer os Platires, os Tablantes, Olivantes e Tirantes, os Febos e Belianises, com toda a caterva dos famosos cavaleiros andantes das eras passadas, realizando, nesta época em que vivo, tais grandiosidades, estranhezas e feitos de armas, que escureçam os que eles fizeram mais brilhantes. Bem vês, escudeiro fiel e legítimo, as trevas desta noite, seu estranho silêncio, o surdo e confuso estrondo destas árvores, o temeroso ruído daquela água, em busca da qual viemos e que parece despenhar-se e jorrar dos altos montes da Lua, e aquele golpear incessante, que nos fere e magoa os ouvidos; as quais coisas todas juntas e cada uma de per si, bastam para infundir medo, temor e espanto ao peito do próprio Marte, quanto mais a quem não está acostumado a semelhantes acontecimentos e aventuras. Pois tudo isso, que te descrevo, são incentivos e despertadores do meu ânimo, que já está fazendo que me rebente no peito o coração, desejoso de enfrentar esta aventura, por mais difícil que pareça. Assim, aperta um pouco as cilhas do Rocinante, fica-te com Deus e espera-me aqui até três dias, não mais. Se nesse prazo eu não voltar, podes regressar à nossa aldeia e dali, para me obsequiares e fazeres uma boa ação, irás a Toboso, onde avisarás à incomparável senhora minha Dulcinéia que seu cativo cavaleiro morreu, por tentar coisas que o fizessem digno de poder chamar-se dela.


Ouvindo as palavras do amo principiou Sancho a chorar com a maior ternura do mundo e a dizer-lhe:


- Senhor, não sei por que quer vosmecê meter-se em tão tenebrosa aventura. Agora é noite, ninguém nos vê aqui, bem podemos mudar de rumo e desviar-nos do perigo, embora passemos três dias sem beber. E se não há quem nos veja, menos haverá quem nos chame de covardes: tanto mais que ouvi pregar ao cura da nossa aldeia (que vosmecê bem conhece) de quem busca o perigo nele perece. Assim, não é bom tentar a Deus empreendendo tão desaforado feito, onde não se pode escapar senão por milagre; basta o que já fez o céu com vosmecê, livrando-o de servir de joguete, como eu servi, e tirando-o vencedor, livre e salvo, do meio de tantos inimigos, como os que acompanhavam o defundo. E se tudo isto não mover, nem abrandar esse duro coração, mova-o o pensar e crer que, apenas se tenha vosmecê apartado daqui, eu de medo entregarei minha alma a quem a quiser levar. Saí de minha terra, deixei mulher e filhos para vir a serviço de vosmecê, esperando valer mais, e não menos; mas, como a cobiça rompe o saco, a mim rasgou-me as esperanças, pois, quando mais vivas as tinha de alcançar aquela negra e malfadada ilha, que vosmecê me prometeu tantas vezes, vejo que, em paga e troco dela, me quer vosmecê deixar agora em lugar tão distante do trato humano. Por Deus, meu amo, não me faça tal desaguisado; e já que de todo não quer vosmecê desistir dessa aventura, espere ao menos até a manhã, pois, pelo que sei do que aprendi quando era pastor, não faltam mais que três horas para o amanhecer, porque a boca da Buzina está por cima da cabeça e faz meia-noite na linha do braço esquerdo. (...)


O autor do “melhor livro de todos os tempos” morreu pobre e desvalido


Miguel de Cervantes
Aprecio tanto o D. Quixote de la Mancha, do espanhol Miguel de Cervantes Saavedra, que há muito queria compartilhar um pouco dele com meus leitores. É um livro que estou sempre relendo. Faz parte sempre da minha parca bagagem.


Acho que as falas acima dos dois principais personagens – o fidalgo Dom Quixote e seu escudeiro Sancho Pança – dão uma boa mostra do conteúdo do consagrado romance. Sei que algumas menções e mesmo alguns termos não serão compreendidos por quem não teve ainda a oportunidade de ler tão saborosa obra. Ainda mais que foi escrita há 400 anos - lançada a primeira parte em 1605 e a segunda em 1615. No mais, não se trata de um texto jornalístico, e sim literário (jocosamente, poderíamos dizer altamente literário).


Foi considerado o melhor livro já escrito em todos os tempos na área de ficção numa pesquisa entre 100 escritores consagrados de 54 países, feita pelos Clubes do Livro Noruegueses. Para se ter uma idéia do seu reconhecimento, numa lista das 100 obras literárias escolhidas, o Dom Quixote ficou em primeiro lugar com 50% mais votos do que qualquer outro (em segundo lugar ficou Em busca do tempo perdido, do francês Marcel Proust). Não é à toa que a palavra quixotismo (e derivadas) está presente nos idiomas pelo mundo afora.


É tido como um dos livros prediletos do velho líder político Fidel Castro. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, muito ligado a Fidel, recentemente mandou imprimir um milhão de exemplares do Dom Quixote para distribuição gratuita entre os venezuelanos.


Cervantes foi soldado, ferido em guerra contra os turcos (teve a mão esquerda inutilizada), sofreu cinco anos de cativeiro na Argélia. Só conseguiu imprimir a primeira parte do Dom Quixote aos 58 anos. A segunda já quase morrendo. Amargou uma vida inteira de dificuldades de toda ordem. Morreu pobre e desvalido em 1616, perto de completar 69 anos (1547-1616). Muitos apontam semelhanças na vida e na morte dele e de seu principal personagem. Ambos sempre carregaram uma crença imorredoura na luta e nos sonhos, mesmo açoitados pelos repetidos reveses da dura realidade.


Antes de morrer, a primeira parte do livro já tinha sido lançada em alguns países, inclusive na França. Contam que durante a visita à Espanha de uma delegação de franceses ilustres, perguntou-se sobre Cervantes. E ao saberem da sua pobreza, teria havido a exclamação: “Mas como!? Não fizeram desse homem um pensionista do Estado!?”


Os parágrafos acima estão nas páginas 283/284 do Volume I (são três volumes) da edição especial comemorativa dos quatro séculos do livro, da Ediouro Publicações S/A.

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