STÉPHANE HESSEL: “OS BANCOS ESTÃO CONTRA A DEMOCRACIA”


Por Eduardo Febbro – do jornal argentino Página/12 (reproduzida de Carta Maior, de 19/12/2011. É parte da entrevista. Quem quiser lê-la completa é só acessar http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19241 ). 


A revolta não tem idade nem condição. Nos seus afáveis, lúcidos e combativos 94 anos, Stéphane Hessel (foto) encarna um momento único na história política humana: ter conseguido desencadear um movimento mundial de contestação democrática e cidadã com um livro de escassas 32 páginas: "Indignem-se". O livro foi lançado na França em outubro de 2010 e em março de 2011 se converteu no alicerce do movimento espanhol dos indignados.

O quase um século de vida de Stéphane Hessel se conectou primeiro com a juventude espanhola que ocupou a Puerta del Sol e depois com os demais protagonistas da indignação que se tornou planetária: Paris, Londres, Roma, México, Bruxelas, Nova York, Washington, Tel-Aviv, Nova Déli, São Paulo. Em cada canto do mundo e sob diferentes denominações, a mensagem de Hessel encontrou um eco inimaginável.

Seu livro, entretanto, não contém nenhum discurso ideológico, menos ainda algum chamado à excitação revolucionária. “Indignem-se” é, ao mesmo tempo, um convite a tomar consciência sobre a forma calamitosa em que estamos sendo governados, uma restauração nobre e humanista dos valores fundamentais da democracia, um balde de água fria sobre a adormecida consciência dos europeus convertidos em consumidores obedientes e uma dura defesa do papel do Estado como regulador. Não deve existir na história editorial um livro tão curto com um alcance tão extenso.

Quem olhe a mobilização mundial dos indignados pode pensar que Hessel escreveu uma espécie de panfleto revolucionário, mas nada é mais estranho a essa idéia. "Indignem-se" e os indignados se inscrevem em uma corrente totalmente contrária à que se desatou nas revoltas de Maio de 68. Aquela geração estava contra o Estado. Ao contrário, o livro de Hessel e seus adeptos reivindicam o retorno do Estado, de sua capacidade de regular. Nada reflete melhor esse objetivo que um dos slogans mais famosos que surgiram na Puerta del Sol: “Nós não somos anti-sistema, o sistema é anti-nós”.

Em sua casa de Paris, Hessel fala com uma convicção na qual a juventude e a energia explodem em cada frase. Hessel tem uma história pessoal digna de uma novela e é um homem de dois séculos. Diplomata humanista, membro da Resistência contra a ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial, sobrevivente de vários campos de concentração, ativo protagonista da redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, descendente da luta contra essas duas grandes calamidades do século XX que foram o fascismo e o comunismo soviético. O nascente século XXI fez dele um influente ensaísta.

Quando seu livro saiu na França, as línguas afiadas do sistema liberal desceram sobre ele um aluvião de burlas: “o vovozinho Hessel”, o “Papai Noel das boas consciências”, diziam no rádio e na televisão os marionetes para desqualificá-lo. Muitos intelectuais franceses disseram que essa obra era um catálogo de banalidades, criticaram seu aparente simplismo, sua superficialidade filosófica, o acusaram de idiota e de anti-semita. Até o primeiro-ministro francês, François Fillon, desqualificou a obra dizendo que “a indignação em si não é um modo de pensamento”. Mas o livro seguiu outro caminho. Mais de dois milhões de exemplares vendidos na França, meio milhão na Espanha, traduções em dezenas de países e difusão massiva na Internet.

O ultra liberalismo predador, a corrupção, a impunidade, a servidão da classe política ao sistema financeiro, a anexação da política pela tecnocracia financeira, as indústrias que destroem o planeta, a ocupação israelense da Palestina, em suma, os grandes devastadores do planeta e das sociedades humanas encontraram nas palavras de Hessel um inimigo inesperado, um “argumentário” de enunciados básicos, profundamente humanista e de uma eficácia imediata. Sem outra armadura além de um passado político de social-democrata reformista e um livro de 32 páginas, Hessel opôs ao pensamento liberal consumista e ao consenso um dos antídotos que eles mais temem, ou seja, a ação.

Não se trata de uma obra de reflexão política ou filosófica, mas de uma radiografia da desarticulação dos Estados, de um chamado à ação para que o Estado e a democracia voltem a ser o que foram. O livro de Hessel se articula em torno da ação, que é precisamente ao que conduz a indignação: resposta e ação contra uma situação, contra o outro. O que Hessel qualifica como mon petit livre é uma obra curiosa: não há nenhuma novidade nela, mas tudo o que diz é uma espécie de síntese do que a maior parte do planeta pensa e sente cada manhã quando se levanta: exasperação e indignação.

– Você foi, de alguma maneira, o homem do ano. Seu livro foi sucesso mundial e acabou se convertendo no foco do movimento planetário dos indignados. Houve, de fato, duas revoluções quase simultâneas no mundo, uma nos países árabes e a que você desencadeou em escala planetária.

– Nunca previ que o livro tivesse um êxito semelhante. Ao escrevê-lo, havia pensado em meus compatriotas para dizer a eles que o modo no qual estão sendo governados propõe interrogações e que era preciso indignar-se diante dos problemas mal solucionados. Mas não esperava que o livro fosse lançado em mais de quarenta países nos quatro pontos cardeais. Mas eu não me atribuo nenhuma responsabilidade no movimento mundial dos indignados. Foi uma coincidência que o meu livro tenha aparecido no mesmo momento em que a indignação se expandia pelo mundo. Eu só convidei as pessoas a refletirem sobre o que elas acham inaceitável. Acho que a circulação tão ampla do livro se deve ao fato de que vivemos um momento muito particular da história de nossas sociedades e, em particular, desta sociedade global na qual estamos imersos há dez anos. Hoje vivemos em sociedades interdependentes, interconectadas. Isto muda a perspectiva. Os problemas aos que estamos confrontados são mundiais.

–As reações que seu livro desencadeou provam que existe sempre uma pureza moral intacta na humanidade?

O que permanece intacto são os valores da democracia. Depois da Segunda Guerra Mundial resolvemos problemas fundamentais dos valores humanos. Já sabemos quais são esses valores fundamentais que devemos tratar de preservar. Mas quando isto deixa de ter vigência, quando há rupturas na forma de resolver os problemas, como ocorreu após os atentados de 11 de setembro, da guerra no Afeganistão e no Iraque e a crise econômica e financeira dos últimos quatro anos, tomamos consciência de que as coisas não podem continuar assim. Devemos nos indignar e nos comprometer para que a sociedade mundial adote um novo curso.

– Quem é responsável de todo este desastre? O liberalismo ultrajante, a tecnocracia, a cegueira das elites?

– Os governos, em particular os governos democráticos, sofreram uma pressão por parte das forças do mercado à qual não souberam resistir. Essas forças econômicas e financeiras são muito egoístas, só buscam o beneficio em todas as formas possíveis sem levar em conta o impacto que essa busca desenfreada do lucro tem nas sociedades. Não lhes importa nem a dívida dos governos, nem os ganhos medíocres das pessoas. Eu atribuo a responsabilidade de tudo isto às forças financeiras. Seu egoísmo e sua especulação exacerbada são também responsáveis pela deterioração do nosso planeta. As forças que estão por trás do petróleo, da energia não-renovável nos conduzem a uma direção muito perigosa.

O socialismo democrático teve seu momento de glória depois da Segunda Guerra Mundial. Durante muitos anos tivemos o que se chama Estados de providência. Isto derivou em uma boa fórmula para regular as relações entre os cidadãos e o Estado. Mas depois nos distanciamos desse caminho sob a influência da ideologia neoliberal. Milton Friedman e a Escola de Chicago disseram: “deixem a economia com as mãos livres, não deixem que o Estado intervenha”. Foi um caminho equivocado e hoje nos damos conta de que nos encerramos em um caminho sem saída. O que aconteceu na Grécia, Itália, Portugal e Espanha nos prova que não é dando cada vez mais força ao mercado que se chega a uma solução. Não. Essa tarefa compete aos governos, são eles que devem impor regras aos bancos e às forças financeiras para limitar a sobre exploração das riquezas que eles detêm e a acumulação de benefícios imensos enquanto os Estados se endividam. Devemos reconhecer que os bancos estão contra a democracia. Isso não é aceitável.


Tradução: Libório Júnior

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