O professor Edmilson Carvalho, baiano de 74 anos, com larga militância na esquerda desde os tempos da ditadura militar até os dias atuais, é implacável. Em entrevista exclusiva a este blog, faz a afirmação contida no título acima e mais: diz que “o PT é o partido mais caracteristicamente de direita existente no Brasil”, que “o lulismo, com sua influência crescente no seio da massa, foi desastroso para uma esquerda efetiva”, defende o partido revolucionário do tipo leninista, com duras críticas ao PC do B, condena os espaços priorizados pelos comunistas para a militância, como os parlamentos e os “carcomidos” sindicatos, e adverte: não confundir radicalidade com sectarismo.
Arquiteto de formação, Edmilson trabalhou sempre em planejamento econômico, área em que se especializou na Cepal (Comissão Econômica para a América Latina). Teve destacada atuação na Sudene, em Recife (1962 a 1973) e na Secretaria de Planejamento da Bahia. Professor de Economia Política e Teoria Política, atualmente ensina Trabalho e Sociabilidade na Universidade Católica de Salvador.
Teve passagens pelo antigo MDB e pelo PT. Foi militante do PC do B, então na clandestinidade, até o histórico racha de 1981. Na década de 1970, fase crucial da repressão, teve grande visibilidade pública ao participar em Salvador das mobilizações contra o regime militar, através do movimento dos profissionais liberais. Foi presidente do Instituto dos Arquitetos e uma das lideranças do Trabalho Conjunto, espécie de frente única contra a ditadura. Desde a chamada redemocratização, vem se dedicando à assessoria de movimentos operários e populares, tendo atuado neste sentido em entidades como a CUT. Há cerca de 20 anos participa da Oposição Operária (Opop), grupo que edita a revista Germinal, cujo terceiro número sai agora em novembro.
É autor de mais de 40 trabalhos (parte em parceria com o urbanista baiano Edgard Porto) publicados pela Rede Íbero-Americana de Planejamento Territorial, inclusive em países como México, Chile, Argentina, Colômbia e Cuba. Escreveu dois livros: “Produção Dialética do Conhecimento”, editado em 2008, e “A Cidade do Capital e Outros Estudos”, que será lançado em Salvador no próximo sábado, dia 26, na Faculdade de Arquitetura da UFBa (auditório I, Rua Caetano Moura, Federação, das 9 às 13 horas).
Blog Evidentemente - Há hoje no Brasil algum partido político, com alguma visibilidade pública, que pode ser considerado “de esquerda”?
Edmilson Carvalho - Depende do que entendemos por “esquerda”. A resposta requereria ser bem fundamentada para se tornar compreensível. De acordo com o que entendo por “esquerda”, a resposta é não. Dentro da análise que venho desenvolvendo há muito tempo e que não cabe estender no bojo desta entrevista, podemos corroborar a tese da ausência de qualquer traço de marxismo na formação do proletariado brasileiro e que não houve uma só organização partidária que privilegiasse o proletariado nas suas operações de recrutamento e de formação desses operários.
Abro uma única exceção para a POLOP (Política Operária), organização marxista, mas que, contra tudo e contra todos, não logrou viver por um tempo suficiente para deitar raízes profundas no seio da classe operária. Diante das propostas da POLOP, as chamadas “esquerdas” que dominavam o cenário político da “esquerda” em geral se limitavam ao sempre velho e gasto chavão: a POLOP era, para elas, um grupamento “trotskista” e ponto final.
Aliás, dentro do PC do B, por exemplo, a adjetivação ganhava status de negação universal. A reação preconceituosa punha um ponto final na discussão no momento mesmo em que deveria iniciar o debate. Sem discutir o que era o trotskismo, a adjetivação passou a ser característica de toda e qualquer forma de oposição, mesmo que a oposição não fosse endereçada às posições programáticas. O recurso à adjetivação, recurso na mais estreita formulação stalinista, tinha por desiderato negar o mínimo debate no interior das organizações - e ser trotskista equivalia a “queimar” todo aquele indivíduo, grupo ou partido que, trotskista ou não, ousasse se colocar em linha de choque com a essência de uma linha cujos contornos podiam mudar - e mudavam sempre - de acordo com as circunstâncias. Assim, as cúpulas partidárias não tinham qualquer embaraço à troca de concepção e a justificação era a coisa mais tranquila do mundo: bastava negar qualquer filiação à concepção negada por força de uma mudança qualquer posta por circunstâncias meramente conjunturais. Organizações ditas “marxistas-leninistas” podiam até misturar stalinismo com maoísmo e foquismo sem qualquer constrangimento, afirmando se tratar de “marxismo-leninismo”, sem qualquer demonstração ou satisfação para seu público interno ou externo.
Afirmo - e poderíamos discutir o tema de forma mais aprofundada - que o marxismo de Karl Marx e Frederich Engels nunca existiu para o proletariado brasileiro, o que equivale a dizer que o marxismo de Marx nunca foi servido às organizações operárias neste país.
É notório que: PCB (Partido Comunista Brasileiro), PC do B (Partido Comunista do Brasil), PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), o natimorto PRC (Partido Revolucionário Comunista), a AP (Ação Popular) e todas as pequenas frações desprendidas das lutas internas dessas organizações em 1967 e que foram constituir-se como grupos guerrilheiros e promotores de ações de imenso impacto na mídia, em nenhum desses casos houve qualquer semelhança com a proposta de Marx.
BE - Deixando de fora a fundamentação que você faz sobre o assunto (será objeto de uma outra postagem deste blog), seria apropriado classificar o PT como “de esquerda”, classificação adotada comumente na chamada grande imprensa e entre a maioria dos próprios petistas?
Edmilson: "Pode-se afirmar que o PT é o partido mais caracteristicamente de direita existente no Brasil" |
BE - E como se encaixa aí o principal adversário do PT, o PSDB, considerado por muitos analistas como de “centro-esquerda”?
EC - O abominável senso comum, quando presente no pensamento de muitos intelectuais, e que afirma que determinado partido, tomado seja o PSDB como exemplo, é um partido de “centro-esquerda” porque se situa “à esquerda” do DEM, por exemplo, esquece que o PSDB, quando esteve no governo, com FHC, foi o pioneiro desbravador dos caminhos que iriam consolidar a implantação da reestruturação produtiva e da sua cara política, o neoliberalismo no Brasil, retomando a construção dos primeiros tijolos do governo Collor de Melo. Desde quando um partido que advoga e, mais do que isso, que implanta, concebe e objetiva uma versão tão fiel do ideário neoliberal, o projeto das camadas mais podres e mais retrógradas do capital, tem o direito de escapar de ser um partido de direita, melhor dizendo de “direitona”?
BE - É possível a existência (ou a construção) de um partido “revolucionário” em meio a esta pasmaceira atual da falta de mobilização popular, o que os marxistas chamariam de descenso do movimento de massas?
EC - Sim, a criação de um partido de quadros pode acontecer em qualquer época e independe do estágio da conjuntura (não devemos esquecer de que são dois problemas, cada um com um método próprio). Não tenho notícia de um só partido de quadros que tenha nascido nas ruas e praças, e deles é possível dar numerosos exemplos de nascimentos diminutos, com 6, 8, 10 e 22 membros (foi com tal tamanho que o PC do B, o “Partidão”, veio ao mundo). O que torna possível este nascimento aparentemente precoce são algumas características imanentes dos partidos de quadros, tais como: tratar-se, via de regra, de um partido composto, inicialmente, por intelectuais e operários (alguns nascem sem sequer contar com um só operário), com uma intervenção clandestina, numa conjuntura de “descenso do movimento de massas”, o que se traduz em problemas de segurança. Essas são questões básicas, mas elas não se esgotam aí.
BE - Você se refere a um partido do tipo leninista, como o criado por Lênin, o chamado Partido Bolchevique, que liderou a revolução russa em 1917?
EC - Exatamente, é o melhor exemplo histórico.
BE - Mas o tipo de partido leninista não é apontado como um dos motivos do derrocamento da construção do socialismo na União Soviética?
EC - Bem, não concordo com tal visão. Entre a concepção do partido de Lênin e o que saiu da revolução existe uma distância enorme. No partido imaginado por Lênin não havia a questão do partido único, como também não havia disciplina militar, de vez que ele sempre propôs alianças e porque a disciplina não era cega, mas assumida conscientemente. O que prevaleceu, na prática, é que a concepção original do partido de Lênin foi vítima de ambiguidades muito fortes, que nasceram da realidade nacional e internacional.
No primeiro caso, toda vez que uma aliança foi pensada, as demais organizações participantes dessas alianças tentavam implantar a contrarrevolução, o que obrigou o partido a tomar o poder sozinho. A disciplina partidária que prevaleceu e terminou anulando o centralismo democrático - em função do chamado centralismo burocrático -, se deu, no exemplo maior, na necessidade de formar um exército profissional de milhões de homens dirigidos por cerca de 30 mil oficiais provenientes das fileiras do exército czarista, exército que teve de substituir milícias com apenas 10 mil operários mal treinados. A disciplina militar nascia assim de forma abusivamente concentrada e, dessa forma, ela se espalhava para toda a burocracia estatal, incluindo o partido. A mesma disciplina esteve também no chamado comunismo de guerra e em outras instâncias do Estado e das empresas.
As ambiguidades atrás mencionadas é que levaram às deformações implantadas por Lênin e Trotski, que tinham esperança de revogá-las assim que a marcha da revolução o permitisse. O acúmulo de contradições, no entanto, atropelou o processo revolucionário, tornando definitivas as medidas adotadas como provisórias. Assim, a diferença de fundo que existia entre Lênin/Trotsky e Stalin consistia em que, com uma revolução nas mãos, tentando salvar o selo “socialista” em condições adversas, como as de ver-se em confronto com um isolamento que era impedimento cabal, aquela organização passou a sobreviver com ambiguidades crescentes, em cuja orientação cabiam soluções de emergência e que, sendo provisórias, podiam ser revistas assim que as condições e circunstâncias criadas pela própria revolução o permitissem. Até a sua morte prematura, Lênin debateu-se com tais problemas, expondo com clareza as dificuldades, abrindo-se à autocrítica e lutando com todas as suas forças para reverter um processo àquela altura simplesmente inviável.
Stalin - e a burocracia que o sustentava e que era sustentada pelo mesmo stalinismo -, pondo de lado as ambiguidades que assomavam, assumiu o capitalismo de Estado que ele herdou, manipulou sem qualquer constrangimento com a falsa “teoria” da possibilidade de implantação do socialismo num só país, com uma política de terror que diferia em tudo por tudo da posta em prática pelos velhos bolcheviques. Por exemplo, Lênin sempre argumentava, até a exaustão, contra os adversários da revolução, não havendo notícia de um só caso daquilo que viria a ser rotina durante o império stalinista: cortar as ideias de todos seus críticos cortando as cabeças dos portadores de tais ideias.
BE - Qual seria o grau de presença hoje da esquerda nos movimentos sociais e no movimento sindical?
EC - Excelente pergunta, pois ela nos impele a buscar saber qual é o lugar onde essas forças dão prioridade no elenco de critérios práticos do ponto de vista da alocação das forças partidárias, do ponto de vista do espaço social. Só tememos que talvez nos desapontemos por nos encontrarmos com ditas forças nos espaços menos apropriados para uma militância comme il faut, ou seja - como sói acontecer -, nos espaços políticos onde normalmente se definem candidatos, candidaturas, programas, termos de alianças e outros pormenores numa exemplar campanha eleitoral, onde os nossos comunistas vão disputar vagas e cargos nas câmaras de vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores. E também, por fim, os 5 ou 6 preciosos minutinhos de aparição na mídia, tempo e espaço mais do que suficientes para - talvez com uma frase de extraordinário gênio político - se poder liquidar “o candidato burguês”, fulminado com petardo tão poderoso, apesar de que o tempo disponível nos programas de propaganda gratuita seja de uns 3 a 4 minutos, os quais, como já suspeitamos, devem ceder e exceder diante do gênio de que falávamos logo acima.
Outro local onde aos nossos comunistas apraz assentar militância é no carcomido sindicato e na sua extensão, a Central Sindical. Mas o que caracteriza a escolha do sindicato não é a presença dos operários, cada vez em menor numero como sindicalizados, mas muito mais motivação é encontrada na disputa pelo aparelho, pois é o aparelho o que interessa, pois afinal de contas sindicatos e centrais sindicais, com o volume de recursos (financeiros e de outras modalidades) de que dispõem, são sempre um estímulo a mais, um plus para além da conta de ser uma força e uma forma de controle social do ímpeto da classe, como é de praxe agirem sindicatos, sindicalistas e as ditas “esquerdas” no país. E essas esquerdas estão de tal maneira comprometidas com essas formas por elas privilegiadas, que não só não se dispõem a buscar novas formas de organização para sinalizarem para os trabalhadores, como reagem leoninamente contra quem recorre à invenção ou à História, para ver as formas encontradas pelos trabalhadores nos seus momentos especiais de luta.
BE - O que representou para a esquerda o governo de Lula e o que representa sua continuidade com Dilma? A força do lulismo é positiva para o avanço da esquerda e do movimento popular no Brasil?
Edmilson: "O lulismo, com sua influência crescente no seio da massa, foi desastroso para uma esquerda efetiva" |
Quanto a Dilma, sem dúvida, ela participa da mesma concepção básica de Lula. Mas é evidente que existem diferenças dos métodos de governo. Essas diferenças, que apenas estão aflorando – como, por exemplo, uma certa autonomia que não era esperada e que não significa um traço político fundamental -, não se apresentaram ainda de forma mais clara. Lula, nas suas duas gestões, pode manter controle social sem precisar recorrer à repressão generalizada, tendo sido suficiente sua política populista. Dilma, por sua vez, entra no governo num momento em que a crise estrutural mundial do capitalismo ganha corpo e velocidade, se caracterizando por um forte movimento de massa, embora não ocorrido ainda no nosso país. Resta saber se o recrudescimento da crise não vai atingir o Brasil. É de se notar, a respeito, que o ministro da Fazenda, Guido Mantega, fazendo coro com a presidenta, tem feito assustadas referências à gravidade da crise.
Nesta altura da análise, duas perguntas se tornam incontornáveis: como agirá Dilma (e como agiria Lula) numa perspectiva de crise econômica e financeira, com amplos segmentos populares reivindicando com força nas ruas? E como as esquerdas lulistas se comportariam em tal cenário?
BE - Você tem consciência de que sua visão política é chamada de sectária em meios considerados de esquerda?
EC - Tenho plena consciência disso, mas é preciso saber quem é que tem mais espírito de seita: se eu, que fundamento minhas posições com um grau muito elevado de densidade teórica e independência, ou se são os meus críticos, que não levam a sério a questão da investigação teórica feita de modo radical. Só queria lembrar que radicalidade é muito diferente de sectarismo.
(Algumas respostas foram extraídas de textos do entrevistado e adaptadas para a entrevista. Alguns desses textos serão postados neste blog como anexos).
Comentários
No Fazendo Media, mereceu um comentário ou link no Facebook por Mariana Furtado, UERJ.
E no Ananindeua Debates, as posições do entrevistado tiveram uma crítica azeda do "Na Ilharga":
"Alguém providencie com urgência um imosec para estancar a desinteria oral do professor Edmilson até a cirurgia que o fará evacuar novamente pelas vias normais.
E ainda avise pra ele que o governo nunca deve ter o papel de mobilizar as massas, por isso as marchas do MST, LGBT, Marcha das Mulheres, entre outras, devem continuar sendo a manifestação mais legítima da sociedade".
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