A LONGA NOITE (O álbum da dor)


Poema de Reizinho Pereira dos Santos


E a noite chegou cedo
E abraçou a cidade
E escureceu os homens
E o país dormiu um sono tenebroso
E no pesadelo, as loucuras...


Mas hoje
A noite é estrela
A cidade está em festa
A lua
Nos convida a uns acordes de amarguras...


A saraivada de balas corta o silêncio
A casa vizinha é invadida
Um cidadão é posto à forca:
- Está aberta a temporada de caça!


E aproximam-se os milicos!
E vêm em direção ao povo!
E avançam em passos largos!
E vêm em direção ao povo!
E marcham em passos largos!
Investem sobre a multidão!...


Um grito criança
É sufocado num banheiro
Explode mais um “aparelho”
Cai mais um guerrilheiro
- Assassinaram Carlos Marighella!


A patrulha
patrulha o silêncio
A cavalaria desfila na avenida
O toque de recolher
já soou pela enésima vez
Mas a noite apenas começa...


O sangue jorra nos paredões
Escorrega pelos muros
esliza pelos cárceres
Atravessa as ruas
Mancha as praças
E estanca-se nos gabinetes
- Sacia a sede dos ditadores!


Oh! juventude louca, sedenta!
Oh! juventude sessenta!
Em que lata de lixo
Emborcaram teus sonhos
Em que cela maldita
Mudaram teus planos
Em que “pau-de-arara”
Arrancaram-te a chama revolucionária?!


Oh! juventude minha!
Perdeste o rumo
Perdeste o prumo
Perdeste o bonde, a história?!


Vejam! vejam!
Estão todos calados
Estão todos pasmados
Estão todos com medo
Estão todos com medo...


Foram crianças
E não perderam o medo
Foram jovens
E não foram rebeldes
Tornaram-se velhos
E o medo a lhes perseguir...


Não fuja agora!
Ouça os berros dos antepassados...
Sinta...
Os choques elétricos nas genitálias de nossas irmãs!
Ouça...
Os gritos desesperados dos pais inocentes castigados à morte para revelar “nomes”
Ouça...
Os “ais” agonizantes dos estudantes vindo dos porões!
Das catacumbas
Ainda ecoam os gemidos contidos dos padres dominicanos...


A noite é longa...
O silêncio é geral...
O medo domina a todos...


Ninguém viu...
Ninguém ouviu nada!
A “ordem” está mantida.


Quem ousa abrir as portas?
As portas estão todas com medo!
Quem ousa sair às ruas?
As ruas estão todas cerradas!
Quem ousa falar?
Os homens estão todos desertos!...


Um companheiro vive a me dizer
Que tudo não passou de um sono torto
Que tudo não passou de um sonho louco
Que a noite foi longa... longa...
Mas que enfim acordamos?!


Mas onde estão todos
E estas marcas no corpo
E estas rugas no rosto
E este louco poeta
E este ridículo profeta?!


Psiu! Silêncio...
Não fale
Não se comunique...
Um telefonema pode ser fatal!...


Os generais marcham
As botas pesadas (de aço!)
Estremecem o país
A noite é longa
E o sol parece ter abandonado o dia...


Quem responderá as mortes todas
Quem responderá meus companheiros
Quem indenizará minha juventude
Meus irmãos mutilados
Quem responderá
Meus camaradas varridos
Quem responderá?!!!


Livre-se dessa casaca-de-ferro
Dispa-se desse alvará verde-oliva
Desça desse trono
E venha desenterrar os mortos...


Nas valas rasas dos cemitérios esquecidos
Nos fundos dos quintais
Nos porões mal-assombrados
Nas fazendas clandestinas...


Venha trazer de volta
O filho teu que não fugiu à luta
Venha consolar a mãe
Que ainda espera seu filho de volta...


Cessaram-se todos os sinos...
Congelaram-se todos os hinos...


...Pneus queimam solitários
nas trincheiras vazias
Aviões cruzam os céus
em busca de um país distante
Estampam nas bancas a morte Guevariana
O Capitão morto no sertão da Bahia.


O sangue fez-se cinza...
A liberdade fez-se bronze...


Alarme falso!
Alarme falso!


Jamais conseguirão prender Lamarca
jamais!
Jamais conseguirão matar Guevara
jamais!
Jamais conseguirão deter as sementes
Adubadas com sangue no vale do Araguaia
jamais!
Jamais conseguirão deter o broto
Da liberdade na América
jamais!...


E a noite chegou mais cedo
E abraçou a cidade
E escureceu os homens
E o país dormiu... dormiu...


- DORMIU?


Reizinho na exibição do seu filme em São Desidério, no oeste da Bahia (Foto: Jadson Oliveira)
Reizinho é graduado em História pela UFBa, é professor, atualmente dirige o Centro Territorial de Educação Profissional do Velho Chico, em Ibotirama, onde nasceu há 43 anos, cidade da beira do Rio São Francisco a 650 quilômetros de Salvador. Escreveu este poema aos 19 anos, quando era secundarista, num quarto de pensão no bairro de Saúde, na capital baiana. Tinha acabado de ler Batismo de Sangue, de Frei Betto.


Quando do lançamento do seu documentário “Do Buriti à Pintada – Lamarca e Zequinha na Bahia”, em 29 de julho último, na praça central de Brotas de Macaúbas - cidade do semi-árido baiano, região onde o capitão Carlos Lamarca viveu seus últimos dias e onde foi morto -, o poema fez parte da programação da noite. Foi declamado por Júlio Delfino, do grupo teatral “Resistência”, de Ibotirama.


Com ilustrações de Pedro Lima, artista plástico que vive em Seabra/Bahia, foi publicado em 2001. Na apresentação, o ator Paulo Betti, que fez a narração do documentário 10 anos depois, diz: “A Longa Noite consegue o quase impossível: através de belíssimos desenhos e de um texto enxuto, retirar poesia dos anos de chumbo. Parece uma passeata onde vamos removendo nossas dores com os estandartes e as palavras de ordem servindo de vassoura poética. Uma limpeza suave em nossos porões. Ajuda a cicatrizar, conservando a memória”.


Reizinho dedica a publicação “a todos aqueles que foram presos, exilados, torturados e mortos. Que lutaram, lutam e ainda morrem por um país melhor, ou seja, AOS VIVOS !” Na dedicatória, ao me presentear com um exemplar, escreveu: “A poesia torna a História MAIS VIVA. Grande abraço”.

Comentários

Jacira Sena disse…
Caro amigo, seu livro ficou ótimo.

Parabéns.