"LULA HOJE PENSA COM A CABEÇA DE UM CLASSE MÉDIA ALTA” (Parte 3)


Mais uma parte da entrevista do sociólogo Ricardo Antunes, da Unicamp, concedida aos jornalistas do Jornal Opção, de Goiás (fundado em 1975).  Como a entrevista é muito longa, este blog está publicando por partes. Nesta terceira parte, ele continua a falar sobre a precarização do trabalho, especialmente da praga da terceirização, e do papel de Lula - a quem entrevistou longamente ainda no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980 -, assinalando que o PT roubou a cartilha de ideias do PSDB e a executou melhor. O título acima é deste blog.

Na introdução da matéria, os redatores da publicação goiana dizem: “Depois não falem que eu não avisei. Se fosse para escolher uma, seria essa a frase para sintetizar a entrevista de uma hora e 15 minutos concedida ao Jornal Opção pelo sociólogo Ricardo Antunes, uma das maiores autoridades na discussão de questões relativas ao trabalho. Autor de dezenas de livros e centenas de artigos sobre o tema, ele publicou, em 1995, “Adeus ao Trabalho?”, obra que ultrapassou as fronteiras do Brasil e ganhou amplitude mundial, traduzida para vários idiomas. Naquele ano, ele antecipava que as lutas sociais iriam recrudescer, ao contrário do que pensavam estudiosos renomados, como o alemão Jürgen Habermas, que via a classe trabalhadora europeia como ‘pacificada’”.

Andréia Bahia — O que mais mudou com essa flexibilização do mundo do trabalho?

O neoliberalismo foi uma pragmática nefasta que se abateu sobre o mundo, a partir de 1979 na Inglaterra. Logo em seguida, na Argentina da ditadura militar, houve os primeiros embriões por aqui. Logo depois, com Margareth Thatcher [primeira-ministra britânica de 1979 a 1990], Ronald Reagan [presidente dos EUA de 1981 a 1989], Helmuth Kohl [chanceler da Alemanha de 1982 a 1998], a coisa se esparramou. Esse “esparramar” dessa onda de desregulamentação permitiu que os capitais pudessem circular livremente. O capitalismo hoje tem duas patas: a pata da financeirização — que é o saque, a expansão sem geração de riquezas, mas com valorização — e a pata da intensa exploração do trabalho. Como consequências, temos a terceirização, uma praga que avassala o mundo do trabalho. Os trabalhadores terceirizados não têm direitos, trabalham em média três horas a mais do que todos os não terceirizados e as doenças, os acidentes e as mortes são mais frequentes neles. E as empresas dizem que o terceirado gera emprego. É mentira, ele tira empregos, porque três terceirizados fazem o trabalho de seis. Uma pesquisa do nosso grupo na Unicamp aponta que a terceirização é o segundo maior flagelo que atinge a classe trabalhadora — o primeiro é o desemprego. Há depoimentos de trabalhadores há três anos sem férias, por trabalhar em empresas terceirizadas. Quando acaba um contrato, ele pega outra no dia seguinte, porque não pode parar.


Andréia Bahia — No Brasil não há características diferentes no mundo do trabalho, especialmente de 2003 para cá?

Sim, há. Lula sobe ao poder e seu primeiro mandato é um prolongamento intensificado do neoliberalismo de Fernando Henrique Cardoso. Para não dizer que estou inventando, teve reforma da Previdência, taxação dos aposentados — coisa que o PT nunca defendeu —, a liberalização dos transgênicos. Lula seguiu o receituário do neoliberalismo de tal forma que o Fundo Monetário Internacional e o próprio Obama disseram “esse é o cara!”. Em um segundo momento, no segundo mandato, por um conjunto muito complexo de elementos, há uma nuance: a crise política do mensalão, o governo ter ficado no colo da grande burguesia — que segurou o governo, não o movimento popular. Nenhuma grande burguesia é maluca de depor um governo voltado para os ricos. A única coisa que eu concordo com Lula é quando ele afirma que nunca os bancos ganharam tanto dinheiro como no governo dele. Em certo sentido, o governo Lula tem, para a burguesia, uma similitude com os governos militares, em termos de expansão econômica.


Renato Dias — O sr. se refere ao dois governos Lula como um semibonapartismo. Poderia explicar isso no nível ideológico?

Marx tem um texto seminal muito importante, chamado “18 Brumário”. Ele trata de várias dimensões do bonapartismo que são típicas da realidade francesa. Mas há um traço que se tornou universal do bonapartismo: quando a classe dominante não tem um governo que ela crie dentro de seus quadros, dentro dela, ela pode recorrer a elementos egressos de sua classe para fazer um governo melhor para a burguesia do que seus próprios. E o Lula foi excepcional nisso. Um bonapartista é o homem de conciliação. Lula é um mestre da conciliação.


Renato Dias — Inclusive estatizando os sindicatos e os movimentos sociais?

Inclusive sujeitando os sindicatos ao controle estatal — por isso estatizando, nesse sentido — e fazendo o que nem Getúlio Vargas teve coragem: as centrais sindicais, tal como existiam no Brasil, que eram completamente autônomas desde 1983, com a fundação da CUT [Central Única dos Trabalhadores]. Hoje 10% do imposto sindical vai para as centrais sindicais. Isso é uma quantidade enorme de dinheiro, que pode permitir que uma central possa existir sem ter associado, sem a cotização de seus associados. Isso o governo Vargas não fez, mas Lula fez, faltando dois anos para o término de seu mandato.


Renato Dias — Nisso CUT e Força Sindical se parecem cada vez mais?

A CUT diz que é contra o imposto sindical, mas não o devolve. Se eu sou contra o imposto, mas vivo dele, é estranho. A Força Sindical tem duas ou três ramificações. Uma é o velho peleguismo sindical. Mas ela não é só isso: lá dentro há ex-comunistas e neoliberais duros. É bom lembrar que quando a Força lançou seu programa de ação, em 1990, ele era neoliberal e defendia as privatizações, era antiestatista. Eles foram depois mudando isso, aos poucos, em função da perda de base. Mas a Força Sindical defende o imposto sindical claramente.


Renato Dias — A única central que condena o imposto é a Conlutas. Mas como ela financia suas atividades?

Sindicatos livres, associados à Conlutas, movimentos sociais ligados à Conlutas. No meu primeiro livro, “O que é o sindicalismo?” [1980, coleção Primeiros Passos, editora Brasiliense], explico que o fundamental do sindicato é depender da cotização voluntária de seus associados e é o que a Conlutas faz.

Andréia Bahia — Como o sr. avalia os programas de distribuição de renda e geração de emprega do governo Lula?

Quando Lula inicia seu segundo mandato, ele percebe que perdeu a base da classe trabalhadora assalariada. Ele chegou a ser vaiado em São Bernardo do Campo [cidade do ABC paulista, berço do PT e do sindicalismo no Brasil], quando ele disse que os metalúrgicos eram beneficiados e a prova disso era que pagavam imposto de renda. Ora, quem paga imposto de renda no Brasil é assalariado. Os ricos não pagam ou pagam menos, porque eles burlam. Outra questão para ele é que era preciso recuperar essa base social de seu governo. Lula teve uma sacada política muito importante: se perdeu a base dos assalariados organizados, foi recuperá-la com os trabalhadores miserabilizados dos rincões do País, que vivem do clientelismo. Eu tenho uma metáfora para isso: Fernando Henrique é o burguês que, depois de saquear a semana toda, sai da missa no domingo e joga uma moedinha de 1 real para o pobre, que pensa “Puxa, agora vou tomar leite!”; Lula, depois da mesma missa, dá uma nota de 10 reais. A diferença é significativa: faz com que o Bolsa Família atinja 12 milhões de famílias, enquanto o Bolsa Educação de FHC atingia 2 milhões de famílias.


Quando há a crise internacional, entre 2006 e 2007, Lula retoma uma tese que tinha nos anos 1970: o mercado interno é amplo e a classe trabalhadora quer consumir, mas não pode porque a produção é voltada para a classe média alta e para o mercado externo. O que ele fez? Reduziu o imposto do empresariado, da indústria automobilística, da construção civil, etc. O empresariado deu pulos de alegria! Por isso, Lula é o semi-Bonaparte, aquele que atende os interesses da burguesia sem ser parte dela, em uma frase quase literal de Karl Marx. Reduzindo impostos, ele ganha o apoio das classes dominantes. Por outro lado, ele aumenta o salário mínimo, que deveria ser de R$ 2,5 mil, de acordo com o Dieese. Hoje, no governo Dilma pós-Lula, o salário é de R$ 575. É vexatório, mas não posso deixar de reconhecer que, para um trabalhador miserável, esse incremento faz uma diferença grande. Ao aumentar o salário e implementar o Bolsa Família, incentiva o mercado interno e, se não dá para vender soja, etanol e minério para fora, por causa da crise externa, produz para o consumo local. Nesse período, a construção civil e a indústria incorporaram força de trabalho e, com a redução dos impostos, o trabalhador que podia comprou um fogão, uma geladeira, um carro ou até uma casa. Com isso o nível de desemprego diminuiu e o Brasil pôde crescer, saindo do estancamento de 1% de crescimento ao ano para 7%. Isso faz diferença!

Sou um crítico áspero do governo Lula, mas não posso deixar de reconhecer. FHC foi barra pesada e Lula não foi o que a gente queria, mas melhorou muito. O que escuto dos trabalhadores e do povo em geral sobre Lula é que ele não fez mais porque não conseguiu. Disse ao “Estadão” que Lula subiu uma escada alta. É o caso mais bem sucedido do “self-made man” na política brasileira. Só que, a cada degrau de sua ascensão social, um valor Lula deixou abaixo. Tive uma proximidade considerável com Lula no fim da década de 1970 e início da de 1980, cheguei a entrevistá-lo longamente para minha tese de doutorado. Naquela época, Lula lutava nas greves do ABC para que os trabalhadores não tivessem dias descontados. Hoje ele defende que trabalhador que faz greve tem de pagar por isso. Hoje ele pensa com a cabeça de um classe média alta. É por isso que, no dia 23 de dezembro, ele foi à festa dos catadores de lixo, mas passou o ano-novo com um grande burguês, no iate de um Eike Batista ou assemelhado. Isso é o conciliador.

Euler de França Belém — O sr. citou Lula ao lado de Getúlio Vargas. Com quais políticos Lula teria um parentesco? É com os populistas?

A teoria do populismo tem um erro grave, segundo a qual populistas seriam Lula, Getúlio Vargas, Adhemar de Barros, Carlos Lacerda, Leonel Brizola, Fernando Collor, Luís Carlos Prestes, Hugo Chávez, Evo Morales, etc. Uma teoria em que algum traço demagógico já enquadra tantos políticos assim juntos não é correta. Lula tem alguns traços que o aproximam de Getúlio Vargas. Primeiramente, ele é o homem da conciliação; em segundo lugar, como Getúlio, ele também não precisa de um partido. O PT sem o Lula não é nada, enquanto Lula sem o PT é o mesmo. Ele tudo impõe dentro do PT. Por fim, Lula fala com as massas como Getúlio, com uma diferença: este vem da fração agrária brasileira, é um estancieiro dos pampas; Lula é um migrante do Nordeste, veio do mundo rural e se tornou um operário da indústria. Lula é um sujeito popular, alguém que fala com o povo. As classes médias, intelectualizadas, se irritam com Lula, o odeiam, porque ele tem o jeito do trabalhador pobre — e é bom ressaltar que minha polêmica com Lula não tem nada a ver com isso. Todo mundo entende o Lula. É alguém que entra para a história do Brasil. No século 20, só haveria um símile para ele: Getúlio, que ficou de 1930 a 1945 e de 1950 a 1954. Não há nenhuma evidência de que Lula não possa voltar. Seu governo vai ser lembrado por muitas décadas. Não tocou em nenhum pilar que estrutura a miséria brasileira, mas minimizou os níveis de indigência e garantiu a boa vida dos ricos. Vai para a história, então.

Comentários

Anônimo disse…
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