“MADRES” ARGENTINAS: 34 ANOS BUSCANDO OS DESAPARECIDOS

Mirta Baravalle: uma das 14 mães que fizeram a
primeira quinta-feira de protesto em 30 de abril de
1977. Eram as "loucas" da Praça de Maio.
(Todas as fotos desta matéria são de Jadson Oliveira)
De Buenos Aires (Argentina) – No dia 30 de abril de 1977, uma quinta-feira, um grupo de 14 mães, desesperadas, foi à Praça de Maio, em frente ao palácio do governo (Casa Rosada), em Buenos Aires, protestar e pedir informações sobre seus filhos que tinham sido seqüestrados pelos agentes da última ditadura militar (1976-1983). Uma tremenda temeridade! Os argentinos viviam sob o império do terrorismo de Estado, comandado pelo então general Jorge Rafael Videla (hoje cumprindo pena de prisão perpétua por crimes de lesa humanidade). Os policiais as empurravam para se afastarem do palácio e ordenavam, como costumam fazer em épocas de tirania diante de “reuniões” públicas: “Circulem... circulem...”


As mães então começaram a circular em redor da pirâmide que fica no centro da praça, rodeadas por forte aparato militar. Circularam naquela quinta-feira e voltaram na quinta-feira seguinte. E depois na outra quinta, e na outra, e na outra. Queriam porque queriam ao menos notícias de seus filhos queridos, sumidos nas trevas do terror. Já não eram 14, e sim centenas. Se tornaram as Mães da Praça de Maio (Madres de Plaza de Mayo). E não pararam mais de circular, mesmo quando três delas – Azucena Villaflor, presidenta da entidade, Esther Ballestrino e María Ponce - foram também sequestradas e também desaparecidas. (No dia 18/11/2010 elas comemoraram 1.700 manifestações na praça, 1.700 quintas-feiras).


As "madres" da Linha Fundadora deram origem ao extraordinário
movimento que desafiou a ditadura argentina no auge do terror
As "rondas" já são mais de 1.700: sempre às
quintas-feiras e sempre ao redor da pirâmide
Nas comemorações especiais centenas de militantes, das mais
diversas entidades, engrossam as manifestações das "madres"
Eram “as loucas” da Praça de Maio. Poucos podiam ou tinham coragem de apoiá-las, os democratas (os ainda vivos e/ou ainda em liberdade) rareavam, os combatentes e organizações da esquerda, a maioria peronistas, estavam sendo dizimados, a Igreja Católica, enquanto instituição, estava do outro lado – quando as “madres” chegavam à praça, as portas da Catedral Metropolitana, que está na mesma praça, eram fechadas -, os grandes jornais, as emissoras de rádio e TV, também estavam alinhados com a ditadura.


102 bebês roubados pelos repressores já foram descobertos e tiveram sua identidade restituída


Mas as “loucas” insistiram. Hoje, quase 34 anos depois, as “madres” – às quais se somaram as “abuelas” (avós), os “hijos” (filhos) e os familiares dos desaparecidos – continuam a circular em torno da pirâmide da Praça de Maio todas as quintas-feiras, a partir das 3 horas da tarde. Com o lenço amarrado na cabeça, símbolo do movimento, muitos com os dizeres: “Aparición con vida de los desaparecidos”, exibem nos broches e cartazes as fotos, nomes e datas do sequestro de seus parentes assassinados.


Continuam a circular mesmo que a ditadura tenha sido derrubada há pouco mais de 27 anos e que muitos repressores/torturadores estejam na cadeia: só no ano passado a Justiça proferiu 110 condenações e cerca de 800 acusados estão na fila do banco dos réus, a maioria já com prisão preventiva. Mesmo depois de se tornarem uma referência internacional quando se fala de defesa dos Direitos Humanos. Seu êxito político é fantástico, não é à toa que uma gorda fatia da agenda da presidenta Dilma Rousseff, na sua recente visita à Argentina, foi dedicada às “madres” e “abuelas”.


E há números significativos: a organização não governamental Equipo Argentino de Antropologia Forense (EAAF), das mais de 1.200 exumações feitas, já conseguiu identificar os corpos de 446 desaparecidos (sem incluir identificações realizadas por outras vias), conforme informação de Daniel Bustamante, investigador do EAAF. (O número sempre mencionado de desaparecidos é em torno de 30 mil. Claro que é uma estimativa. Há registro oficial de cerca de 10 mil); quanto aos bebês roubados das presas políticas, cuja estimativa chega ao redor de 500, 102 já tiveram sua identidade restituída, segundo dados computados por Abuelas de Plaza de Mayo.


 Marcha da Resistência para comemorar o Dia Internacional
dos Direitos Humanos
“Paredão para todos os milicos que venderam a Nação”


“Alerta, alerta, alerta, que estão vivos todos os ideais dos desaparecidos” é um dos gritos de guerra mais freqüentes nas quintas-feiras, em meio aos cantos, poemas e discursos, principalmente quando as manifestações ganham maior dimensão em datas especiais, como no último 9 de dezembro, quando as “madres” comemoraram o Dia Internacional dos Direitos Humanos (elas anteciparam um dia, porque na data oficial, dia 10, houve muitas comemorações promovidas pelo governo federal). A imagem mais eloquente do ato – foi a 30ª. Marcha da Resistência - era uma imensa faixa (lembrando uma serpente, aqui é chamada de “bandera”), contendo cerca de 3.500 fotos e nomes de desaparecidos, carregada pelos manifestantes – de umas três quadras da Avenida de Maio até a Praça de Maio. Outras consignas repetidas na praça: “Que digam onde vão com os desaparecidos”, “Paredão para todos os milicos que venderam a Nação”.


Mirta Baravalle, de 86 anos, é uma das 14 “madres” que protagonizaram a histórica “ronda” de 30 de abril de 1977. No último dia 3, quinta-feira, ela estava mais uma vez na praça, com um grupo de manifestantes circulando a pirâmide, tendo à frente a faixa Mães da Praça de Maio – Linha Fundadora. Depois relembrou os tempos difíceis em que eram chamadas de “loucas” e poucos lhes davam atenção: “Os policiais afastavam a gente do passeio do palácio, empurravam para fora da praça, a Catedral nos fechava as portas...” Pendurado no pescoço, um pequeno cartaz com as fotos e os nomes da filha e do genro, Ana Maria Barravalle e Julio Cesar Galizzi, sequestrados em 25 de agosto de 1976. “Este ano vai completar 35 anos de busca, sigo buscando, até hoje nada, minha filha estava grávida de cinco meses, o bebê até hoje também não encontrei”, diz ela.


Sara Holmquist perdeu seu irmão: "Ele era
secundarista. Nunca tivemos notícia dele".
Cristina Dithurbide (à direita, com a amiga Margarita Noia): "Eram
militantes Montoneros, é preciso dizer isso, porque é a identidade
política deles". 
Já Sara Holmquist, de 65 anos, da província (estado) de Tucumán (noroeste do país), participa sempre de atos de protesto pelos desaparecidos, em memória de seu irmão, Luis Adolfo, sequestrado em 29/05/76. Aponta para o enorme cartaz pendurado no pescoço: “Ele era secundarista, era da UES (União dos Estudantes Secundaristas), se estivesse vivo teria hoje 54 anos. Nunca tivemos notícia dele”. E Cristina Dithurbide exibe seu broche com o retrato do casal Roald Montes e Mirta Noemí, na época com 28 e 19 anos. Mirta era sua irmã. “Os dois foram assassinados em La Plata (capital da província de Buenos Aires) em 22 de novembro de 1976, junto com mais quatro companheiros. Eles eram militantes Montoneros, é preciso dizer isso, porque é a identidade política deles”, explica. (Montoneros era uma organização de guerrilha urbana, da esquerda peronista, muito ativa nos anos 60 e 70).

Manifestação da Associação das Mães da Praça de Maio, liderada
por sua presidenta Hebe de Bonafini (alta, de óculos escuros, com
a alça da bolsa vermelha).
Também as “madres” que atuam aglutinadas na Associação das Mães da Praça de Maio (há cinco entidades relacionadas com as “madres”, veja nota abaixo) vão sempre às quintas-feiras à Praça de Maio. Seus membros, no entanto, já não se dedicam à busca dos desaparecidos. Têm, na verdade, uma atuação bem mais ampla e diversificada, com uma fundação, a Universidade Popular, publicações próprias, biblioteca e até um projeto de construção de casas populares. Sua presidenta, Hebe de Bonafini, é atualmente uma líder política de grande influência e está, inclusive, engajada na campanha para reeleição da presidenta Cristina Fernández de Kirchner. Na quinta, dia 3, ela estava à frente de um grupo de manifestantes, falando de suas atividades e da política nacional. A principal faixa dizia: apoiamos o projeto nacional e popular, que é atualmente a proposta central do kirchnerismo (ou peronismo kirchnerista).



AS “MADRES” SÃO CINCO ENTIDADES


Fala-se muito das “madres” (mães) e também das “abuelas” (avós) da Praça de Maio, relacionadas com a busca dos presos políticos assassinados pela ditadura argentina e também com os bebês retirados das mães. A ideia que passa é que se trata de uma única organização. Mas há, na verdade, cinco entidades envolvidas em atividades às vezes convergentes e às vezes nem tanto, certamente de difícil percepção para a maioria das pessoas, especialmente quando são estrangeiras.


Das cinco entidades, a de maior volume de atividades e maior inserção na política argentina, a Associação das Mães da Praça de Maio, não cuida da busca dos desaparecidos, embora esta busca tenha sido a ação inicial de todas as “madres”. A associação tem outros objetivos, conforme menciono acima. A ela estão ligadas a Universidade Popular Mães da Praça de Maio e a Fundação Mães da Praça de Maio.


Uma das entidades que, apesar de menos conhecida, tem uma 
atuação que se soma ao trabalho das "madres" e "abuelas".
Quem continua cuidando da busca dos desaparecidos e, em decorrência, atuando em prol do julgamento e punição dos repressores, é, como o próprio nome indica, Mães da Praça de Maio – Linha Fundadora. Uma terceira entidade é Avós da Praça de Maio, que tem uma atuação semelhante, mas com ênfase na busca e identificação dos bebês roubados das presas políticas.


E há mais duas entidades, cujos membros muitas vezes participam de manifestações comuns: H.I.J.O.S. – Hijos y Hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio (Filhos e Filhas pela Identidade e a Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio); e Familiares de Desaparecidos e Presos por Razões Políticas.

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