A COLONIZAÇÃO DA SUBJETIVIDADE

Por José Pablo Feinmann (*)


A História se faz com sangue. Como diz celebremente Marx no não menos célebre capítulo XXIV de O Capital: o capital vem ao mundo jorrando sangue e lodo. Em suma, a violência joga na História um papel central. Freud fala de uma patologia das comunidades culturais. Hobbes diz seu célebre dito: homo homini lupus (o homem é o lobo do próprio homem). E Hegel – com essa genialidade olímpica que o caracteriza – sentencia: a história avança por seu lado mau. Uma das grandes conquistas da revolução comunicacional tem sido nos acostumarmos com o horror da história. Podemos estar fazendo qualquer coisa, estar em qualquer parte, e veremos na TV ou na primeira página de um jornal alguma imagem atroz. Ou crianças que morrem de fome ou Saddam Hussein a ponto de ser enforcado ou as torturas em Guantánamo ou em Abu Ghraib. Seguiremos na nossa. No máximo, se pensa, depois se verá melhor e com mais calma na Internet. Mas Internet é a morte da emoção. É o reino da errância. Ninguém se detém em nada. É uma navegação infinita rumo a uma meta inalcançável e incognoscível em meio a um universo virtual dentro do qual nada significa nada. Este escamoteio do sentido, este aplanamento de tudo que existe (“tudo está na Internet”), esta impossibilidade de construir verdades num universo em que tudo se afoga com a informação, com o ir de um lado a outro, com o rodopio insensato dos links, é a essência do homo Internet, e que ninguém se engane com as redes de solidariedade ou com essa incontinência de subjetividades solitárias que são os blogs, tudo isso dura pouco. Os seres humanos nasceram para se comunicar um em presença do outro (ou, sem dúvida, esta comunicação é mais rica do que a virtual), olhar-se nos olhos e para tocar-se e até para sentir o alento.


Esta liquação, este dissipar da História, esta insensibilidade, esta indiferença ou esta pavorosa acomodação ante o horror é um dos grandes triunfos do poder. Deveria haver bastado a foto daquela menina vietnamita correndo desnuda por uma estrada e chorando aos gritos porque o Napalm lacerou suas carnes para que o ser humano se detivesse e se perguntasse uma, ao menos, das grandes perguntas: para que? Para que? Para impor nossos projetos, para ganhar dinheiro, para derrotar a vontade dos outros, para idiotizá-los, para impedir o surgimento de uma subjetividade verdadeira, para dominar o mundo e dominá-lo para que nossos negócios não sofram impedimentos, não se detenham por barreiras absurdas. Estados Unidos diz: “Se no século XIX matamos dezenas de milhares de índios foi porque esse era o custo que o Progresso exigia”. Quanto a essa pobre menina, não nos façam repetir o que todos sabem: seu pranto é um hino elevado em honra da democracia e da liberdade pelas quais nós lutamos neste país. Em suma, o capital segue chegando ao mundo jorrando sangue e lodo ou abandonando milhões à fome e às pestes ou gerando uma nova barbárie à qual se teme e à qual se castigará sem piedade: os de fora, os que querem entrar onde não se deve porque assim o decidiram os poderosos, os triunfadores, os que chamam “imigrantes indesejados” aos milhões que querem ser incluídos na sociedade civil, submeter-se aos rigores do Leviatã, mas viver dentro, e não nos descampados do não-futuro. A eles, o rigor de uma lei que deverá ser cada vez mais dura. O fracasso do socialismo nas terríveis, dolorosas experiências que instituiu no século passado, chegando quase a matar a mesmíssima ideia que alentou em seus teóricos (em cujos textos se adivinhavam já os erros que estalaram depois), abriu as portas a este capitalismo que, sob a desculpa da luta contra o terror, tornou-se ele mesmo terrorífico. Só nos resta esperar que o eterno Eros triunfe na sua eterna luta contra a pulsão da morte, são as palavras finais de Freud em O mal-estar na cultura (1930). Se em 1930 o mestre vienense duvidava desse triunfo, hoje, já transcorrida a primeira década do século XXI, só resta esperar que a humanidade do capital se detenha em sua guerra contra a vida e contra o planeta em que vivemos. Onde está a esperança? Não precisamente nos terrenos do inimigo mortal do Ocidente, o Islã. Aí ainda se apedreja as mulheres. É como se a menina do Vietcong seguisse correndo e gritando de dor. América Latina ensaia uma unidade de autodefesa. Se protege. Veremos. Por agora, a missão de cada um dos que amam a vida e os valores que a sustentam deverá ser a de entregar-se a uma nobre tarefa: evitar a brutalidade dos criminosos, lutar para que, ao menos, nem tudo seja tão terrível, que tudo seja menos brutal. Reduzir a brutalidade de uma História desenfreada não será pouco. Isso, por agora.


(*)José Pablo Feinmann é pensador argentino. Pequeno trecho do ensaio Crítica da Razão Imperial – Livro I – A colonização da subjetividade (título adotado por este blog para o trecho publicado) – O poder midiático e a construção do sujeito-Outro – Por que o poder busca a submissão do sujeito? (Tradução: Jadson Oliveira)

Comentários

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Bonito texto. Porém ingenuo em alguns pontos como a citação dos EUA: "Estados Unidos diz: “Se no século XIX matamos dezenas de milhares de índios foi porque esse era o custo que o Progresso exigia”."
Um país não cita, apenas pessoas citam. Apesar de que na poesia possamos falar de tudo e de qualquer situação sem restrições!