Bar dos Cornos


Depois da viagem de barco a Parintins, a cidade do boi-bumbá, Gervásio Uriaiê estava deslumbrado com o mundo de água do Rio Amazonas. “Rio Amazonas não, corrigiu, o Amazonas e seus paranás, igarapés e igapós...” Certo, que sujeito chato! Já está ficando bêbado. Botou os pés em Manaus, foi logo avisando: “Bebi pouco em Parintins e agora quero conhecer os botecos daqui”.

Fez um périplo por vários bares e ancorou na Choparia São Marcos, eleito seu bar predileto na capital amazonense. Já estava na quinta dose, misturando, como sempre, uísque, chope, vodka, cachaça e campari. “Estou com quase 50 anos, quando chegar lá, não se preocupem, vou moderar”, dizia à guisa de atenuante. Dizia e repetia, sinal da embriaguez.

Tela feita pelo artista plástico Afrânio de Castro, em homenagem à filha de Dona Maria, fundadora do Bar.

- Zezinho (já sabia o nome do garçon), hoje tive um dia muito proveitoso. Vim para o centro da cidade caminhando, 50 minutos. Saí lá da Rua do Arsenal, na Colônia (Machado Oliveira, Zona Sul), desci para o Mercado da Panair, diz-se portuguesmente pa-na-ir, tomei um mingau de mugunzá defronte, subi ali pelo Amarelinho, antiga zona boêmia da classe média, agora mais popular, passei pela ponte de Educandos, no Igarapé dos 40, e cheguei neste miolo, o lugar mais simpático de Manaus.

Gervásio Uriaiê adorou o centro de Manaus, aquele imenso acampamento de ambulantes. A Choparia São Marcos fica numa esquina da Avenida Floriano Peixoto com a Rua Quintino Bocaiuva, na esquina em frente está o Garajão (edifício para estacionamento de automóveis).


Naquele dia ele já tinha passado no Bar Jangadeiro, no do Porto e no do Armando, este um pouco mais afastado, na Praça São Sebastião (juntinho do badalado Teatro Amazônia, cartão postal da cidade). O bar tinha sido distinguido, inclusive, pela revista Veja, o que lhe valia uma certa antipatia.

- Não esqueça de contar – acrescentou – que já bebi também umas no bar do Carlos, lá perto do Palácio Rio Negro, no do Ceará, em Betânia, e no da Lene, no Morro da Liberdade, nos dois últimos com os amigos da Aeronáutica. Além do boteco de seo Vivaldo, lá na Colônia, aquele senhor gentil torcedor fanático do Flamengo. Lembra? Ele ficava, a todo momento, interrompendo a conversa para atender o celular. Dizia que eram garotas, meninas jovens, piscava o olho insinuante. É viúvo...

- E as mulheres, seo Gervásio? Já pegou alguma manauara? Perguntou o garçon, aproveitando a deixa.

- Ih... aí tô mal... resmungou nosso herói, meio ensimesmado. Decididamente não era assunto de sua predileção. Não se sabe bem o porquê. Algum trauma?
Mas, cinco doses circulando pela corrente sanguínea...

- Sabe, Zezinho? Anteontem mesmo... me dá a saideira aí, por favor, vodka... Retomou pouco depois: “Anteontem à noite fui com um amigo, aliás o amigo me levou, a uma boate, um inferninho, não sei como chamam por aqui, me esqueci do nome, lá perto do Teatro Amazônia, aquelas moças seminuas, depois nuas, dançando e se esfregando no tablado, uns movimentos que me vem à mente a imagem de vacas se estatelando no matadouro। Tinha uma novinha, se apresentava como Patrícia, uma belezura, tinha uma coroa grandona, uma bunda imensa, coisa horrível... mas esse negócio de pagar mulher, não tá com nada”.

- Mas sem mulher também não dá, né seo Gervásio?

Gervásio Uriaiê concordou com a cabeça. “É uma merda, seo Zezinho!” E foi se abrindo, pediu a última saideira (no dia seguinte não ia se lembrar de nada).
“Minha terra lá na Bahia é terra de cabra macho. Você já ouviu falar em Jeremoabo?” Zezinho disse que não, nunca. “E de Lampião, capitão chefe dos cangaceiros?” “Aí sim, já ouvi...”

- Pois é! Exaltou-se. “Fique sabendo, tá na História com 'H' maiúsculo, que Jeremoabo foi a cidade escolhida pelos sobreviventes do cangaço para se entregarem à Justiça depois da morte do capitão. Claro que eles foram traídos pelas autoridades, mas não vamos entrar nesses detalhes”, discorreu professoralmente.

- Sim, seo Gervásio, a gente tava falando das mulheres...



- Não, Zezinho, peraí! Só queria reforçar que minha terra é terra de cabra macho. Acontece que – continuou em tom menos exaltado – quando deixei meu sertão seco pra conhecer esta terra de água e floresta, eu tava meio chateado, tinha me separado da mulher. E um amigo meu, um filho da puta cachaceiro de lá, andava me sacaneando, espalhando que houve chifre na história, coisa e tal. Porra nenhuma! A moça é uma santa mulher, a separação tinha sido por minha culpa.

- Aliás – prosseguiu com a conhecida loquacidade etílica - você vai me desculpar, mas tenho notado que os manauaras são picados por essa coisa de corno. As brincadeiras, as piadas... Outro dia vinha num táxi e o locutor da Rádio Difusora FM dando uma notícia da instalação de mais uma filial da Associação dos Ex-cornos do Paraguai. E acrescentava: em Manaus ainda não foi possível criar uma sede da associação, porque não há local suficientemente amplo para abrigar tantos sócios.

- Seo Gervásio, por favor não vai se aborrecer comigo, mas eu tenho a impressão que o senhor está no lugar certo, disse o garçon com um brilho moleque no olhar.

- Como assim? Não entendi.

O garçon Zezinho apontou para a parede. Nosso embriagado viajante mirou para um quadro pendurado. Não dava pra ler tudo. Foi lá, trocou de óculos, leu tudo. Era uma página de jornal, tamanho standart, com moldura e tudo, no centro uma foto grande de dona Maria, a matriarca fundadora do bar há 70 anos, título em duas linhas, de fora a fora: “Da tradicional choparia de Manaus: Bar dos Cornos”.

Gervásio Uriaiê estava bêbado, mas deu pra entender. “Bar dos Cornos!? Meu bar preferido!?” Encabulado, pediu a conta, pagou.


- É brincadeira, seo Gervásio. Coisa do passado, hoje ninguém nem fala mais disso - Zezinho tentava atenuar o golpe.

- Pelo sim, pelo não, não sei se volto mais aqui, respondeu se afastando, cambaleante, acenando em despedida.

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