O camelô que sabe de hematófagos

Paulo tem um cabedal incrível de informações sobre os mais diversos assuntos

Paulo José da Silva, 46 anos, é um dos três mil ambulantes que povoam o centro de Manaus com suas barracas de miudezas. Mas tem gostos e conhecimentos bastante incomuns. Carrega em sua cachola um cabedal incrível de informações sobre morcegos, insetos, cobras, escorpiões, sapos, papagaios, abelhas, peixes, animais os mais variados e de estranhos costumes.

Tem um hobby que cultiva com paixão: colecionar cartões telefônicos, mais de 20 mil exemplares. E procura acompanhar as coisas da vida, as notícias, a política, tem sempre uma opinião engatilhada sobre os fatos do dia-a-dia, enquanto vai vendendo brinquedos, calculadoras e pilhas no burburinho da Avenida Eduardo Ribeiro, já quase chegando à Praça do Relógio.


Paulo mantém há 14 anos sua banca de miudezas no centro de Manaus

Quando o conheci, estava vendendo sombrinhas e guarda-chuvas, num dia chuvoso, em frente a um supermercado, a uns 10 metros de sua barraca. “Aqui é melhor, as pessoas saem do supermercado, geralmente têm mais dinheiro, chovendo...”, explicou. “E esta chuva, não vai parar não? começou antes das 8 horas”, comentei. Já tinha passado do meio-dia.

- Olha aqueles insetos voando, quando eles aparecem é porque a chuva está parando, disse apontando uns mosquitos no ar. “Ah, você entende de insetos”, brinquei. Pronto! Foi como uma senha. Paulo disparou a falar de insetos e outros bichos, aproveitando os intervalos entre um e outro freguês (reproduzo a seguir muito do que falou, graças a gravação feita posteriormente, longe do barulho da rua).



Apenas três espécies de morcegos, dentre as cerca de mil, se alimentam de sangue

HEMATÓFAGOS – “Na verdade, só existem três espécies de morcegos que se alimentam de sangue, todas as três vivem na América Latina, inclusive no Brasil” (Esclarecimento: de fato, segundo a Wikipédia, na Internet, existem ao todo cerca de mil espécies de morcegos – muitas comem frutas - e só três se alimentam de sangue. Portanto, essa identificação dos mamíferos voadores com sangue deve ser influência do cinema, dos filmes sobre vampiros. Os hematófagos, animais que se alimentam de sangue, são, em sua maioria, parasitas como mosquitos, piolhos e carrapatos).

Continua nosso camelô ilustrado: “Os morcegos usam o sangue humano quando suas presas naturais, os antílopes (mamíferos, geralmente com chifre, parecidos com vacas e cabras, o mais conhecido é o veado), as grandes aves, deixam de existir, ficam mais escassos, são dizimados, devido a problemas como a caça predatória e o desmatamento de grandes áreas. Quando faltam esses animais, passam a atacar o gado, as galinhas, depois, devido à necessidade, atacam o ser humano. Detalhe, um chama o outro através de sons quando tem alimento em abundância. Eles não chupam o sangue, fazem o corte com a presa e lambem, tem uma substância na saliva que não deixa o sangue coagular, vamos dizer o sangue não seca, não fica duro, vai escorrendo e eles lambendo. Vão sempre usando um animal que, a depender do tempo, chega a morrer de anemia profunda”.

Curiosidade - “Quando o morcego fêmea tem suas crias, nos primeiros dias quando não pode se desprender da caverna por causa dos filhos, as crias anteriores, já adultas, ajudam na alimentação da mãe e dos filhotes, vêm com as asas lambuzadas de sangue e a mãe e os filhotes lambem. Mesmo depois de criadas, as crias continuam com essa ligação com a mãe”.

PAPAGAIOS – “Os papagaios vivem de 80 a 100 anos, são animais de vida longa e produzem poucos ovos, uma média de dois apenas. Ao contrário de animais que vivem pouco e têm muitos filhotes, para garantir a sobrevivência da espécie. Tem papagaio com inteligência de uma criança de 12 anos, chega a aprender 1.500 palavras, não é do Brasil, não me lembro de que região”.

COBRAS – “Existem três tipos de cobras, as ovíporas (botam ovos e chocam), as vivíporas (já nascem como cobra), e ovivíporas (botam o ovo, os filhos quebram a casca e vão embora). As ovíporas são as mais venenosas, existem dois tipos de veneno, um que dá gangrena e outro que dá hemorragia. No interior geralmente as pessoas sabem os cuidados que devem ter, sabem as dificuldades para um tratamento adequado. Sei de um caso, no interior onde minha mulher nasceu, que um lavrador foi picado num dedo, imediatamente tirou o facão e decepou o dedo pro veneno não circular. Se salvou, melhor perder um dedo do que a vida, no interior as pessoas aprendem logo essas coisas, tem o instinto, os pais ensinam, logo que eles vêem uma cobra tratam logo de matar. As cobras normalmente evitam a friagem, procuram se esquentar em lugares onde as folhas estão em estado de decomposição, então o cara no interior já evita lugares assim, porque sabe onde elas se escondem”.

ESCORPIÃO – “Se multiplica com muita facilidade, tem uma espécie que não precisa de macho e fêmea para se reproduzir, basta uma alimentação adequada. Existe uma espécie no Pará, preta, que quando pica você fica gritando de dor 24 horas, claro que a depender do local se pode ter remédio para aliviar”.

ARRAIA – “Uma curiosidade sobre a picada de arraia: se você tirar o pé da água, dói, se deixar o pé dentro da água, sem contato com o ar, não dói. A picada da arraia não chega a matar, mas a pessoa sente muita dor”.

Coleção de cartões telefônicos – Vamos a outro assunto, embora Paulo tenha falado bem mais, como, por exemplo, longamente, sobre abelhas e sapos. (Mas a dissertação já está a alongar-se). São mais de 20 mil cartões, contando apenas os das coleções, muitas delas “fechadas”, isto é, completas, que são muito valorizadas. Há ainda os exemplares dispersos usados para troca.




Cartões telefônicos da Bahia entre os mais de 20 mil colecionados


Ele vai pegando as pastas, atulhadas num armário e comentando sobre as coleções, de todos os estados brasileiros. “Esta aqui, As Sete Maravilhas do Mundo, passei oito anos e não consegui fechar, saiu pelo Ceará, a primeira vez. Com o passar do tempo, Brasil Telecom também lançou, só que esta aqui é mais detalhada”.

E vai abrindo pasta e mostrando, Natureza Viva, também do Ceará, sobre pássaros, 42 cartões, Nascimento de Cristo, uma outra do Rio de Janeiro, outra da região Sul, região Centro-Oeste... “E da Bahia, Paulo?”, interrompi. “Ah, você quer da Bahia, acho que é a pasta 17...”

BAHIA – Mostrou uma coleção da antiga Telebahia, empresa estatal baiana que foi privatizada. “Tem uma variadade grande de cartões da Bahia, coleções lindas”, disse, seguindo-se o desfile de santos, festas, igrejas, Lavagem do Bonfim, as fitinhas de Senhor do Bonfim, Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Elevador Lacerda, praias, Chapada Diamantina, Morro do Pai Inácio, a famosa Lagoa Azul, as baianas do acarajé, os clubes de futebol, fortes, chafarizes, etc, etc.

Ao encontrar as aves e animais regionais, vai falando das características de uns, comparando com os de outras regiões, “vou aprendendo nos cartões, tem muita informação”। Na vez das frutas, apontou o cacau e discorreu sobre a “vassoura de bruxa”, contou que é originária da região amazônica, criticando a política oficial de combate à doença. Falou na diversificação da lavoura no sul da Bahia, lembrando o cultivo de produtos do norte, como o cupuaçu e o guaraná.

Terceiro mandato para o presidente Lula – Nos enredamos por outros papos. Paulo, um ambulante deveras original, parece ter uma opinião disponível sobre tudo. Surgiu na conversa a nova lei que obriga o novo motorista a esperar um ano para dirigir nas estradas. “Um absurdo, protestou. Por que, ao tirar a carteira, não tem logo um curso ensinando como dirigir na estrada? Depois de um ano, ele começa a rodar nas estradas, do mesmo jeito, desprepado”.

- E a política, Paulo, você acompanha a política?

- Ah, infelizmente, a gente tem de acompanhar, querendo ou não, quem tem um pouco de noção, termina acompanhando. Aproveitou para condenar o “loteamento” de cargos públicos, colocando pessoa despreparada para chefiar um órgão, mesmo sendo analfabeta no setor específico.

- E o que você acha do nosso presidente Lula?

“Companheiro – declamou imitando a voz de Lula - vocês têm que ter um pouco de paciência, eu prometi 10 milhões de empregos, já garanti o meu, agora vocês vão ter um pouco de paciência”. Em seguida, falando seriamente, declarou apoiar o presidente, inclusive defende um terceiro mandato para ele.

“Bom, eu acho que tá sendo um bom presidente, comparando com os outros, o país melhorou, acho que as pessoas criticam de barriga cheia, se for comparar com outros, melhorou muito. Para as pessoas mais pobres, melhorou muito. Os ricos continuam ganhando, mas agora são obrigados a ajudar os pobres, coisa que eles não faziam. As pessoas que recebem a bolsa (Programa Bolsa Família) já podem comprar mais, o que melhora as mercearias, o comércio informal e o comércio formal”.

Quem paga imposto? - “Olha – prossegue o ambulante manauara - eu malmente fiz minha sétima série, mas não admito quando uma pessoa diz, ah, as empresas pagam imposto, vocês não. Pelo amor de Deus, quem paga imposto é o último que compra. Porque tem o preço de custo, aí incluem todos os impostos, entra o lucro e tem o preço de venda. Quem paga o imposto? o último que comprou”.

Este é Paulo José da Silva,
nascido de pais cearenses no município de Careiro da Várzea (Região Metropolitana de Manaus), pai de dois filhos, um de 22 anos (ajuda na barraca) e outro de 19, universitário de Administração, já estagiando. Está há 14 anos com seu ponto de vendas legalizado, filiado ao Sindicato do Comércio de Vendedores Ambulantes de Manaus (Sincvam). Antes, trabalhou em loja com carteira assinada, mas prefere como está hoje.

Como vocês puderam notar na parte da matéria sobre os cartões, estive em sua casa, uma boa casa segundo meus padrões, a meio caminho para quem vai ao bairro de Ponta Negra. Cria cachorros, passarinhos e plantas. E está sempre a se aventurar por novos experimentos. Suas áreas de conhecimento não aparentam guardar barreiras.

“E dona Nazaré, sua mulher, que acha de seus gostos?” Ele dá a entender que ela não é bem uma entusiasta de suas atividades “extra-curriculares”, vamos chamar assim. Pisca o olho, sorri e vai em frente.


Comentários

Anônimo disse…
parabens pela matéria. Esse deve ser conhecido pela globo no quadro me leva brasil.
Seria muito bom se todos o tomassem como exemplo de Persistência e dedicação e principalmente, acreditar que todo o conhecimento nesse mundo é válido e viável.
Unknown disse…
adorei muito a sua postagem. foi um prazer ler sua matéria até porque "O camelô que sabe de hematófagos" é meu pai.
Ele deve estar muito motivado a continuar com seus desafios e como filho estou muito orgulhoso.
Obrigado!!!!!
Adiel disse…
Tenho que fazer um trabalho diferente sobre os fortes de Salvador, me interessei na coleção de cartões telefônicos e gostaria saber como encontrar este ilustre colecionador.